Refletindo o cancelamento online à luz do arquétipo do trapaceiro
A “cultura do cancelamento” se tornou um fenômeno marcante do nosso tempo. São incontáveis os casos de pessoas, marcas ou celebridades que, após dizer ou fazer algo considerado problemático, recebem uma avalanche de críticas e acabam “banidas” dos círculos digitais. Mas, se olharmos esse movimento pela lente da Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung, podemos encontrar na figura do Trickster — também chamado de “trapaceiro sagrado” — uma chave para entender por que o caos e a ruptura acontecem, além de como essas situações podem evoluir (ou não) para a reconciliação.
O que é o Trickster?
Em inúmeras mitologias, o Trickster aparece como um agente de desordem e inovação. É aquele que subverte regras estabelecidas, engana deuses ou homens e, com isso, revela falhas e hipocrisias da comunidade. Ele não é totalmente “malévolo”; frequentemente, ao provocar o caos, gera também uma espécie de cura ou renovação.
No mundo online, essa energia do trapaceiro surge quando alguém “puxa o fio” de um problema social que estava negligenciado ou quando expõe a vulnerabilidade moral de uma figura pública. Esse movimento bagunça as convenções e obriga o coletivo a encarar aquilo que preferia ignorar.
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Entre projeções e julgamentos
Para Jung, sempre que ocorre uma mobilização coletiva intensa, há projeções em jogo. Ou seja, pessoas projetam no “cancelado” aspectos que detestam ou temem em si mesmas. É nessa dinâmica que o Trickster faz seu trabalho: ele traz à tona facetas inconscientes, sacode padrões de comportamento e expõe nossas contradições.
A reação massiva das redes não apenas pune — também sinaliza as fissuras do inconsciente coletivo, revelando preconceitos, tensões raciais, de gênero e outras contradições que carregamos enquanto sociedade.
O papel do “caos digital”
Muitos veem o “cancelamento” como injusto; outros o veem como necessário. Seja qual for a perspectiva, não há dúvida de que essas campanhas online podem evidenciar desigualdades estruturais ou abusos de poder. O problema surge quando a busca por justiça se converte numa espécie de linchamento público, sem possibilidade de reparação.
O Trickster, nesse caso, se confunde com a nossa Sombra coletiva, espalhando ressentimento ao invés de estimular mudança construtiva. A questão passa a ser: como canalizar essa energia “desmascaradora” para algo que promova evolução autêntica, e não apenas escândalo?
Perguntas para refletir
- “Que parte de mim estou cancelando quando ataco publicamente alguém no Twitter ou Instagram?”
- Avalie se existem elementos seus que, inconscientemente, são projetados naquele que está sendo “cancelado”.
- “Estou promovendo justiça ou apenas vingança?”
- Reconheça a linha tênue entre responsabilizar alguém e cair no terreno de um ataque destrutivo.
- “Existe espaço para reconciliação?”
- O Trickster derruba muros, mas, depois dele, há a chance de reconstruir algo novo. Como, então, lidar com as feridas após a denúncia coletiva?
Ruptura e reconciliação
Se o Trickster é o mensageiro que expõe hipocrisias, é preciso lembrar que ele também pode conduzir à renovação. Isso acontece quando, ao expor a ferida, abre-se espaço para que o coletivo admita o problema e construa pontes de diálogo.
Uma forma de reconciliação começa no reconhecimento do erro — tanto por parte de quem errou como de quem aponta o erro — e segue para debates construtivos, onde ninguém é simplesmente “objeto” de ódio. A Psicologia Analítica fala do enfrentamento da Sombra: admitir que há algo disfuncional, mas também dar chances para a pessoa (ou a comunidade) crescer a partir do conflito.
Conclusão
O “cancelamento” é, sim, complexo e doloroso. Porém, analisado pelo prisma do Trickster, ele traz uma oportunidade de evolução social e psíquica. Ao bagunçar convenções, expor vulnerabilidades e questionar “intocáveis”, o trapaceiro nos faz encarar verdades incômodas.
A decisão que cabe a todos nós é se essa ruptura vai nos guiar a uma reconciliação mais madura ou se permanecerá apenas no campo do escândalo e da agressão. No fim das contas, o Trickster só revela o que já estava oculto — mas, para que haja cura, cada indivíduo e todo o coletivo precisam encarar seus próprios paradoxos e estar dispostos a dialogar.
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