De Exu a Hermes: O Trickster como Mestre da Transformação Psíquica

Introdução

Desde os primórdios da humanidade, histórias sobre figuras astutas, transgressoras e imprevisíveis se repetem nos mitos e lendas de diferentes culturas. O Trickster, arquétipo central dessas narrativas, é o mensageiro do caos, aquele que desafia as normas e desmonta certezas, gerando tanto destruição quanto renovação. Ele pode ser um trapaceiro, um herói cômico ou até mesmo um agente de transformação, dependendo do contexto em que se manifesta. Mas, acima de tudo, o Trickster ensina que a mudança é inevitável e que a rigidez mental e social é um caminho para o colapso.

Na mitologia afro-brasileira, Exu encarna esse arquétipo em sua essência mais pura: irreverente, ambíguo e sempre presente nas encruzilhadas do destino. Já na mitologia grega, Hermes desempenha um papel semelhante, sendo tanto um mensageiro divino quanto um astuto enganador. Ambos nos ensinam que a psique humana precisa do impulso transgressor para evoluir, e é sobre esse papel do Trickster na transformação psíquica que iremos refletir.

O Arquétipo do Trickster na Psicologia Analítica

Carl Gustav Jung identificou o Trickster como um arquétipo primordial do inconsciente coletivo. Ele aparece nas figuras do palhaço, do trapaceiro, do embusteiro e do deus astuto, sempre desafiando a ordem estabelecida e trazendo novas possibilidades de existência. Em termos psicológicos, esse arquétipo representa o aspecto mais instintivo e instável da psique – aquele que precisa desestabilizar o ego para provocar o crescimento.

O Trickster não é apenas um agente de confusão, mas também um mediador entre opostos. Ele conecta o consciente ao inconsciente, a luz à sombra, a estabilidade ao caos. Por isso, ele é essencial no processo de individuação, a jornada psicológica descrita por Jung na qual o indivíduo precisa integrar todas as suas facetas para se tornar completo.

Exu: O Senhor das Encruzilhadas, Início e Fim

O nome “Exu” tem origem na língua iorubá e pode ser associado à ideia de “esfera”, algo que gira e nunca se fixa. Exu é tanto início quanto fim, sendo a entidade responsável por abrir caminhos e, ao mesmo tempo, aquele que impõe desafios para testar a resistência e adaptação do indivíduo.

No Candomblé e na Umbanda, Exu é o grande comunicador, aquele que abre caminhos e liga mundos. Ele não é um deus do mal, como erroneamente interpretado por influências coloniais, mas sim um guardião das possibilidades, o mestre das trocas e do movimento. Seu riso e sua irreverência servem para desmascarar hipocrisias e desafiar convenções, rompendo padrões cristalizados na psique individual e coletiva.

Em termos psicológicos, Exu representa a energia da desestruturação necessária para a reconstrução. Ele nos ensina a abraçar o inesperado, a rir das certezas absolutas e a compreender que todo fim é também um recomeço. Seu papel é fundamental para aqueles que enfrentam crises existenciais, pois ele nos convida a enxergar as encruzilhadas da vida não como ameaças, mas como oportunidades de reinvenção.

Hermes: O Mensageiro e o Trapaceiro

O nome “Hermes” tem origem na palavra grega “ἕρμα” (herma), que significa “marco de fronteira” ou “ponto de passagem”. Ele é o deus que transita entre os mundos, levando mensagens dos deuses aos homens e, ao mesmo tempo, atuando como um ardiloso negociador.

Na mitologia grega, Hermes é o mensageiro dos deuses, o patrono dos viajantes, dos comerciantes e dos ladrões. Ele possui a velocidade para se mover entre os mundos e a astúcia para enganar até os mais poderosos. Hermes não é apenas um mediador divino, mas também um criador de soluções inesperadas. Sua inteligência não obedece a regras fixas – ele as contorna, reinventa e adapta conforme a necessidade.

Psicologicamente, Hermes representa a flexibilidade da mente, a capacidade de encontrar novas saídas em situações de impasse. Assim como Exu, ele transita entre realidades e desafia normas, trazendo mensagens do inconsciente para a consciência. Seu arquétipo é crucial para aqueles que se sentem presos a estruturas rígidas de pensamento, pois ele ensina que a adaptação é uma das maiores forças do ser humano.

O Trickster Como Agente de Transformação Psíquica

O Trickster nos obriga a confrontar o desconhecido dentro de nós mesmos. Ele é o lado que mente para si mesmo, que se sabota, mas que também, paradoxalmente, carrega a chave para a libertação. Sua presença pode ser desconfortável, pois ele desestabiliza certezas, ridiculariza verdades absolutas e questiona o que antes parecia inquestionável. Contudo, é nesse caos que reside o potencial para a verdadeira mudança.

No processo terapêutico, o Trickster se manifesta quando o indivíduo se vê preso em padrões repetitivos e precisa de uma ruptura para seguir adiante. Ele pode surgir em sonhos como figuras caricatas ou irreverentes, trazendo mensagens simbólicas que desafiam a lógica racional. É nesse momento que o ego precisa ceder espaço para que o inconsciente possa apresentar novas possibilidades de significado e existência.

Além disso, o Trickster atua na cultura e na sociedade. Ele está presente nos movimentos artísticos que rompem paradigmas, nas revoluções que desafiam sistemas opressores e nas figuras públicas que trazem novas perspectivas para o debate coletivo. Ele é o impulso que impede a estagnação, garantindo que a transformação nunca cesse.

Conclusão

O Trickster, seja na figura de Exu, Hermes ou qualquer outro de seus múltiplos disfarces, nos ensina que o caos é parte essencial da existência. Ele é o mestre das encruzilhadas, aquele que nos obriga a olhar para o inesperado e a reconsiderar nossas certezas. Sua presença na psique individual e coletiva nos lembra que a transformação só ocorre quando nos permitimos desafiar as regras e questionar nossos próprios limites.

Como diria o próprio Exu: “O mundo gira, mas não sai do lugar se ninguém empurrar.” E, muitas vezes, é o Trickster que dá esse empurrão. Resta saber se estamos prontos para o desafio.