Jung e Axé: Um Olhar Psicológico Sobre o Poder da Energia e Ancestralidade

Confie no Seu Axé


Introdução

O que Carl Gustav Jung e o conceito de Axé têm em comum? À primeira vista, parecem habitar universos distintos. De um lado, a psicologia analítica, estruturada a partir dos arquétipos e do inconsciente coletivo. Do outro, a cosmovisão das tradições afro-brasileiras, que vê o Axé como uma força vital que permeia tudo e todos. Mas quando olhamos mais de perto, percebemos que ambos falam sobre energia, equilíbrio e individuação.

O Axé pode ser entendido como a expressão da energia psíquica de Jung. O Ori, por sua vez, ressoa com o conceito do Self, aquele centro organizador da psique que guia a jornada de cada indivíduo. Neste artigo, exploramos essa interseção e como a compreensão do Axé pode ser enriquecida através da psicologia junguiana, reforçando a importância de confiar na própria energia e caminhar rumo à individuação.

Um olhar psicológico, não uma validação espiritual

Antes de seguirmos, é importante enfatizar que esta análise representa um olhar psicológico sobre as tradições afro-brasileiras e não uma tentativa de provar, refutar ou validar qualquer crença espiritual. A psicologia analítica é uma ferramenta interpretativa que busca compreender padrões psíquicos e simbólicos, mas não tem a pretensão de definir ou reduzir a riqueza das tradições religiosas a conceitos psicológicos. O Axé, o Ori e os Orixás são vivências espirituais que possuem significados profundos dentro das religiões de matriz africana, e nossa intenção aqui é apenas refletir sobre possíveis paralelos simbólicos que podem enriquecer a compreensão tanto da psicologia quanto da espiritualidade.


Axé e Energia Psíquica: Duas Faces da Mesma Força

Para Jung, a energia psíquica é a força que move os processos internos, dando forma a impulsos, emoções e criações. Ela se manifesta de forma dinâmica, podendo ser bloqueada ou canalizada de maneira mais produtiva (JUNG, 2015, v. 6, § 663). No Candomblé e nas tradições afro-brasileiras, o Axé possui função semelhante: ele é fluxo, potência vital, e sua preservação garante crescimento, proteção e equilíbrio.

Se considerarmos a energia psíquica como uma corrente que impulsiona a psique, podemos compreender o Axé como uma de suas expressões culturais. Ambos são forças que precisam ser cultivadas e equilibradas para que possamos atingir nossa plenitude. Assim como uma energia psíquica bloqueada pode levar a distúrbios psicológicos, um Axé enfraquecido pode gerar desequilíbrio, desarmonia e perda de vitalidade.

Cuidar do Axé, portanto, significa cuidar da própria psique, garantindo que a energia vital flua livremente e seja direcionada de forma construtiva.


Ori e o Self: O Centro da Jornada

Na psicologia analítica, o Self é a totalidade do psiquismo, um centro organizador que busca a individuação. Jung descreve o Self como uma instância superior que transcende o ego, guiando o indivíduo na busca por autenticidade e completude (JUNG, 2015, v. 9/2, § 44). Esse conceito encontra um paralelo direto no Ori, a cabeça espiritual e o princípio divino que rege a vida de cada pessoa no Candomblé.

O Ori não é apenas um componente místico, mas um guia interno, uma bússola que direciona cada indivíduo em sua caminhada. Para Jung, o processo de individuação envolve integrar as múltiplas partes da psique – consciente e inconsciente – em um todo coeso. Da mesma forma, cuidar do Ori é fundamental para manter-se alinhado com sua verdadeira essência.

O culto ao Ori, tão presente nas tradições africanas, pode ser visto como uma prática de conexão com o Self, permitindo que o indivíduo reconheça seu propósito e siga um caminho mais autêntico. Respeitar o próprio Ori é equivalente a seguir o chamado da alma para a individuação.


O Inconsciente Coletivo e a Ancestralidade: Arquétipo ou Imagem Arquetípica?

Jung propôs a existência do inconsciente coletivo, um repositório de padrões psíquicos universais que transcendem a experiência individual (JUNG, 2015, v. 9/1, § 88). No entanto, é fundamental fazer uma distinção crucial: nunca temos acesso direto ao arquétipo, mas apenas às imagens arquetípicas que emergem do inconsciente coletivo.

Os arquétipos são estruturas vazias de conteúdo, padrões primordiais que organizam a experiência humana. Já as imagens arquetípicas são as formas simbólicas concretas que esses arquétipos assumem em diferentes culturas e épocas (JUNG, 2015, v. 9/1, § 91). No contexto das tradições afro-brasileiras, os Orixás não são arquétipos, mas imagens arquetípicas que manifestam aspectos fundamentais da psique humana.

Os mitos dos Orixás carregam símbolos que expressam padrões psíquicos profundos, mas cada cultura os veste com imagens e narrativas específicas. Assim, Oxóssi, Xangô ou Iansã não são arquétipos em si, mas sim expressões simbólicas que representam temas arquetípicos como a caça, a justiça e a tempestade.


Conclusão: Confie no Seu Axé

Se Jung estivesse imerso no universo afro-brasileiro, talvez dissesse que o Axé é a manifestação cultural da energia psíquica universal. Ele é a força criadora que impulsiona a vida e nos conecta com nossa essência. Assim como a individuação exige a integração dos opostos e o equilíbrio entre o consciente e o inconsciente, o cultivo do Axé exige respeito à ancestralidade, conexão com o Ori e fluxo harmonioso de energia.

Cuidar do Axé significa cuidar da própria psique. Honrar o Ori é respeitar a busca pela individuação. Reconhecer a força dos ancestrais é integrar o inconsciente coletivo de forma ativa. E compreender os Orixás como imagens arquetípicas, e não como arquétipos, é uma forma de reconhecer sua profundidade sem diluir sua singularidade.

No final das contas, confiar no seu Axé é confiar na sua energia, no seu caminho e na sua potência.

E você? Como tem cuidado do seu Axé hoje?


Referências

JUNG, C. G. Tipos Psicológicos. Tradução de Lúcia Mathilde Endlich Orth. Petrópolis: Vozes, 2015. (Obras Completas, v. 6).

JUNG, C. G. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Tradução de Maria Luiza Appy e Dora Mariana R. Ferreira da Silva. Petrópolis: Vozes, 2015. (Obras Completas, v. 9/1).

JUNG, C. G. Aion: Estudos sobre o Simbolismo do Si-Mesmo. Tradução de Dom Mateus Ramalho Rocha. Petrópolis: Vozes, 2015. (Obras Completas, v. 9/2).